quarta-feira, 30 de março de 2011

Você já ouvir falar no Cavango?






De vez em quando aparece umas viagens muito legais. Fomos neste final de semana para uma missão onde a irmã do Dr. Foster, Shelley, que é enfermeira, e seu marido Peter moram. O lugar é no meio do nada e, por isso mesmo, se parece mais com a África que a gente conhece nos filmes. Muito lindo! Tem um rio maravilhoso que passa a uns 3 km da casa deles. O nome do lugar é Cavango, e é onde o pai deles, Dr. Bob Foster, morou muitos anos, na década de 60 e 70, construindo um hospital onde havia uma colônia de leprosos. Eles agora reconstruíram lá uma clínica onde o Du foi dar umas consultas. Fomos no aviãozinho da Asas do Socorro. Um barato voar baixinho sobre o rio! O que é muito triste é que na missão do Cavango, onde havia um hospital e várias casas de missionários e funcionários do hospital, e os doentes, hansenianos ou não, com suas família, também moravam por ali. Aí, no início da guerra, chegaram as tropas do governo com soldados cubanos e destruíram tudo. A família do Dr. Foster morava lá e eles só não morreram porque estavam viajando, mas perderam tudo. Os leprosos que não conseguiram fugir foram mortos por pura covardia. Dá uma tristeza ver tantas ruínas ali, sinais muito fortes de toda a destruição que significou a guerra, marca visível da maldade humana. Mas a esperança renasce, não é mesmo? O pessoal está aproveitando o alicerce que ficou das casas e do hospital prá tentar reconstruir o lugar. Tem muitas ruínas de casas e até de uma igreja que era bem grande. Eles estão com planos de reconstruí-la sobre o alicerce antigo. É muito trabalho mesmo! A própria casa da irmã do Dr. Foster foi construída sobre as ruínas de uma casa de um dos missionários. Todo o material foi trazido de navio dos Estados Unidos, mas valeu a pena, porque a casa ficou ótima! No domingo o Du pregou na igrejinha de local, para mais de 200 pessoas, com tradução simultânea para a língua local ganguela. Na volta aqui para Lubango, sobrevoamos a Tunda Vala, aquela fenda enorme que forma um desfiladeiro e é um dos pontos turísticos mais famosos de Angola. Simplesmente deslumbrante!
OBS: Mensagem escrita pela Norinha e editada por mim

segunda-feira, 21 de março de 2011

Convidados para a grande festa

Todas as segundas-feiras há um culto para os pacientes no hospital. Já preguei algumas vezes ali e nessa semana novamente fui convidado a dar “a palavra”. Fiz uma meditação na parábola da grande festa, relatada no evangelho de Lucas capítulo 14:15-24. Nessa história, Jesus conta sobre o “grande banquete apocalíptico”, ou seja, o banquete final, imagem da restauração e redenção final da humanidade, vivendo na presença de Deus em paz e justiça afinal. Porém, nessa história, surpreendente e injustificadamente, muitos se recusam a ir. Contei a história e fiquei imaginando quantos ali que me ouviam não tinham o suficiente sobre suas mesas, mas estavam convidados a participar desse banquete. Aliás, os ricos da parábola nem quiseram ir ao banquete, preferindo se distrair com seus próprios afazeres, suas próprias posses, ou seus próprios relacionamentos. Os que eram pobres, aleijados, alijados, foram os que acabaram assentando-se à mesa. Assim eram muitos ali: doentes, com incapacidades físicas, sociais, financeiras, mas que podiam desfrutar já antecipadamente da paz, alegria e da festa de ser aceito por Deus, e se relacionar com Ele. Sei que isto pode soar como escapismo ou apenas uma idéia etérea para minimizar os problemas terrenos reais, mas não vejo assim. É uma esperança real, concreta, que anima e motiva, sabendo que o bem há de prevalecer, como todos os bons filmes testificam. Nos leva também a no presente lutar por uma sociedade mais justa e fraterna, sinal do Reino de Deus entre nós.

domingo, 13 de março de 2011

Dia Internacional da Mulher? Eihn??

Esse ano aqui eles perderam um de seus feriados: o dia internacional da mulher, que é feriado nacional aqui, caiu na terça de carnaval, também feriado. Assim, não se lembrou muito da mulher, já que aqui também tem "folia", apesar de se limitar basicamente à terça-feira e não contagiar tanto o país como o que acontece no Brasil.
Bem, o que queria comentar não é sobre o carnaval e sim sobre o Dia Internacional da Mulher, diante do que acontece aqui. Na quarta-feita, dia 09, atendi uma senhora que havia vindo de longe para consulta. Trazia inúmeras receitas e exames, simples e básicos mas numerosos, que não mostravam doença aparente. Suas queixas eram um pouco como chamamos no meio médico "inespecíficas", do tipo dor no peito e nas costas, mas sem apontar para uma doença cardíaca, pulmonar ou da caixa torácica. Tinha também insônia e parecia deprimida, apesar de negar estar "para baixo". (Um parêntese: minha experiência aqui é que os angolanos tendem a negar problemas emocionais, ainda mais do que os brasileiros, o que parece ser assim o substrato mais favorável para o surgimento das doenças chamadas psicossomáticas, ou seja, o corpo grita quando nossa mente não produz outros meios de expressar os "problemas da alma".)
Enfim, diante dessa impressão comecei a indagar um pouco sua vida pessoal e ela me revelou o seguinte: foi mãe de sete filhos, dos quais seis ainda vivem, o mais velho com 17 anos e o mais novo com quatro anos. O "esposo", se posso chamar assim, no início a tinha como única esposa, mas com o passar do tempo foi arrumando mais esposas, e atualmente era "esposo" de cinco (!!!). O número de filhos foi diminuindo à medida que as esposas se acumulavam. Três com a segunda, dois com a terceira, um com a quarta e a quinta, uma adolescente de 17 anos, encontra-se grávida no momento. Perguntei com qual delas ele vivia ou como se dividia entre suas mulheres. Ela então me disse que não sabia bem. Nunca dorme na casa dela nos últimos anos, mas vem todos os dias para pegar suas roupas lavadas, comer, e, pasmem, pegar dinheiro com ela, que tem uma vendinha na feira popular daqui, chamada de "praça". Ela disse que até agressões físicas sofria do "marido", especialmente se não lhe dava dinheiro.
Enquanto ia perguntando e ela ia respondendo, algumas lágrimas apareceram em seus olhos. Tinha motivos para as dores no peito e nas costas! Que situação mais oprimente!
O pior é que esta história aqui se repete de forma tão freqüente... e se repete também por toda África, infelizmente, tanto no ambiente urbano, quanto, até de forma mais comum, no ambiente rural, em culturas onde o privilégio masculino e a opressão feminina ainda sobrevivem no mundo atual. Além disso, para piorar a situação, a violência doméstica é extremamente comum aqui, quadro agravado pelo consumo quase que desenfreado do álcool.

O que vale o Dia Internacional da Mulher como feriado nacional?

Nos faz lembrar a conversa de Jesus com a mulher samaritana, relatada no capítulo 4 do evangelho de João: "se você conhecesse quem é esse que te pede água, você lhe pediria e ele te daria da água da vida."
Viva a mulher angolana! Que Deus as ajude a enxergar a sua própria dignidade e a quebrar esse jugo perverso!

sábado, 5 de março de 2011

Você já ouviu falar de fístula vésico-vaginal?


Fique tranqüilo: não é nenhum termo pornográfico. Na verdade, é uma doença. Não me lembro se conhecia essa doença antes de vir para a África. Aqui, fiquei conhecendo não apenas a doença, mas seus terríveis efeitos.
Se trata normalmente de uma complicação obstétrica (especialmente aqui na África), geralmente em partos muito prolongados, que levam até dias. A situação mais comum aqui é a seguinte: meninas novas, pobres e sem acesso a assistência médica, se engravidam e na hora do parto, a cabeça da criança simplesmente é maior do que a passagem da sua pelve, ou há alguma outra complicação que dificulta a passagem do bebê. O trabalho de parto se prolonga indefinidamente já que ou não têm acesso a serviços de saúde (o que é mais frequente) ou não querem ir ao hospital por medo ou vergonha de não "conseguirem ser mãe por si mesmas." Com a morte do bebê ao fim do trabalho de parto infindável e mal sucedido, acontece também a laceração da bexiga e da vagina.
As consequencias médicas, psicológicas e sociais são simplesmente trágicas: a menina perde a criança, com todo o peso emocional disto, e fica com uma ferida que faz a urina "vazar" da bexiga para a vagina, fazendo que ela fique constantemente "molhada" e com cheiro de urina.
O marido geralmente abandona sua esposa jovem em decorrência disso, com toda a humilhação e opróbrio secundários. Além disso, devido ao seu mau cheiro, as meninas acabam vivendo isoladas da família e da sociedade.
Triste demais, né? Bom, a boa notícia é que nosso hospital tem uma verba especial de uma entidade norte-americana, a Fistula Foundation, para tratar essas meninas, que geralmente são muito pobres e vêem dos grotões longínquos do país. Elas são operadas e acompanhadas em nosso hospital, que oferece também apoio logístico para ficarem por perto até o término do tratamento. Muitas têm assim sua saúde e dignidade restauradas.
Fico muito feliz por este trabalho que nosso hospital faz, mudando a realidade de tantas meninas de forma tão significativa.
Essa foto é de uma enfermeira canadense que passou conosco três meses e se dedicou a dar aulas para as meninas com fístula, ajudando-as a melhorar sua auto-estima e ensinando-as coisas práticas como matemática simples, costura e artesanato. Bonito trabalho. Valeu, Angela.